sexta-feira, 14 de abril de 2023

Depois de depois do depois

 



 

E agora? Essa é uma pergunta que tenho me feito há um tempo. Me formei, e agora? Tantas coisas mudaram desde que entrei na universidade. Adentrei a licenciatura com a expectativa de estabilidade. Pensei que, apesar de todas as dificuldades, um professor teria ao menos um emprego estável com um salário minimamente decente para a sobrevivência. Mas agora, tudo parece distante. Talvez essa fosse uma das várias justificativas que criei para explicar aquilo que me fugia à razão. Uma tentativa de controlar o incontrolável. De dar ordem ao caos. Por que escolhi a docência? Mais do que isso, por qual motivo escolhi a História? Com certeza não foi por puro amor a profissão ou por um chamado “divino”. Não caio nessa de todos terem um propósito nesse mundo e o meu é ser um professor de história. Sofri bullying no meu ensino fundamental. Implicavam com a minha personalidade “introspectiva”, faziam chacota da minha voz, da forma como ando. Criticavam meu cabelo, meus lábios, minha cor. Precisavam colocar sempre a minha masculinidade a prova. Me isolei, desenvolvi tendências suicidas e criei cicatrizes abertas até hoje. Comecei a olhar para as pessoas com desdenho e arrogância, subestimando a todos. Então por que seria um chamado? Eu, o E.T. da escola sendo professor. Não entendo.

Diferentemente dos meus professores de História, eu não tinha uma pré-disposição para o curso desde a infância. Sempre me imaginei sendo biólogo, não um historiador. Essa ideia só veio a se concretizar no ensino médio, como algo “natural”. Eu não era bom em matemática, nem em nenhuma área das ciências da natureza ou da linguagem. Sobrou humanas e, dentro delas, a História me pareceu mais razoável. Sendo sincero, tenho medo de dar aula. Quando mais a colação se aproxima, mais me lembro dessas cicatrizes. Além disso, as escolas públicas possuem problemas muito maiores que as aulas. Uso de drogas ilícitas, tráfico, agressões físicas, expulsões, violência doméstica e abuso sexual, fome. Esses são algumas das questões presentes nas escolas que estudei. Além do mais, com a pandemia as escolas estão precisando lidar com a evasão altíssima, com uma enorme defasagem dos alunos e com a saúde mental debilitada de toda a comunidade escolar. Acrescenta-se a isso a implementação do novo ensino médio e se tem a mistura perfeita para o caos.

Tenho medo da escola, de não ser um bom professor. Não sei qual postura adotar, o quão rígido ou flexível preciso ser. Congelo toda vez que um aluno conversa comigo e começo a suar frio quando vejo tantas pessoas em um só lugar (geralmente a maioria bem maior que eu). Não consigo olhar direito para os olhos, tenho a língua presa e não gosto de toque. Tenho medo de qual futuro me aguarda. Todas essas emoções me fazem refletir por que estou aqui hoje. Apesar de todo os problemas, tenho algumas hipóteses. Acho que eu nunca quis ser como as pessoas ao meu redor. Não queria um futuro em que eu me contentaria com um diploma de ensino médio e um trabalho exploratório a troco de um salário mínimo (às vezes menos que isso). Também não queria me tornar uma estatística. Não sinto mais raiva dos meus colegas de sala, mas sim pena. Muitos se associaram ao crime organizado, outros tiveram filhos na adolescência e alguns foram alvejados pela polícia. Eu não tinha boas referências para seguir, mas me arrisquei em tentar algo diferente.

Provavelmente, sou um dos poucos da minha turma do fundamental que se formou. Podem chamar isso do que quiserem, sorte, mérito, esforço. Eu encaro como dissidência. Sim, o nerd esquisito da sala sobreviveu e se tornou um historiador, contrariando várias estatísticas de violência e de futuros possíveis. Apesar de ser uma jornada um tanto solitária, encontrei ecos e brechas. Sabe, não costumamos ter muitas oportunidades, então é bastante comum encarar as que temos como únicas. As poucas chances que nos são concedidas (ou conquistadas), me fizeram chegar onde estou. Não deveria ser motivo de orgulho, mas se tornou tudo o que tenho. Precisei fazer um curso de História para entender algo básico: as coisas mudam, sejam para piores ou melhores. Eu mudei. Ademais, também constatei algo. O ensino público possui uma energia. Ele é conflitante e está sendo tensionado a todo momento, mas existe uma energia lá apesar de tudo. Os estudantes parecem cada vez mais sedentos por mudanças rápidas. Tenho curiosidade de ver como eles irão transformar o mundo.

Talvez seja por não querer ser como meu pai. Talvez seja por querer fazer diferente do que me fizeram. Talvez seja por raiva, pena ou os dois. Ou talvez seja por eu não ter outra opção. Fato é que eu me formei. Mais do que isso, me formei falando sobre morte e vida, tensionando as brechas até onde consegui. Me formei falando sobre mim, um corpo preto bissexual no país em que a juventude negra é a que mais morre. Há uma energia aí também. Não me arrependo de cursar licenciatura em História. Faria a mesma escolha se tivesse que escolher novamente. O curso de humanas humanizou o E.T. O que fazer agora, depois de depois do depois? Não sei, mas entendo que enquanto viver, haverá infinitas possibilidades de futuro, sejam boas ou ruins. Só sei que continuarei contando histórias.  


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"Exu matou um pássaro ontem,  com uma pedra que só jogou hoje" (ditado iorubá).

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