E agora? Essa é uma pergunta que tenho me
feito há um tempo. Me formei, e agora? Tantas coisas mudaram desde que entrei
na universidade. Adentrei a licenciatura com a expectativa de estabilidade.
Pensei que, apesar de todas as dificuldades, um professor teria ao menos um
emprego estável com um salário minimamente decente para a sobrevivência. Mas
agora, tudo parece distante. Talvez essa fosse uma das várias justificativas
que criei para explicar aquilo que me fugia à razão. Uma tentativa de controlar
o incontrolável. De dar ordem ao caos. Por que escolhi a docência? Mais do que
isso, por qual motivo escolhi a História? Com certeza não foi por puro amor a
profissão ou por um chamado “divino”. Não caio nessa de todos terem um
propósito nesse mundo e o meu é ser um professor de história. Sofri bullying no
meu ensino fundamental. Implicavam com a minha personalidade “introspectiva”,
faziam chacota da minha voz, da forma como ando. Criticavam meu cabelo, meus
lábios, minha cor. Precisavam colocar sempre a minha masculinidade a prova. Me
isolei, desenvolvi tendências suicidas e criei cicatrizes abertas até hoje.
Comecei a olhar para as pessoas com desdenho e arrogância, subestimando a
todos. Então por que seria um chamado? Eu, o E.T. da escola sendo professor.
Não entendo.
Diferentemente dos meus professores de
História, eu não tinha uma pré-disposição para o curso desde a infância. Sempre
me imaginei sendo biólogo, não um historiador. Essa ideia só veio a se
concretizar no ensino médio, como algo “natural”. Eu não era bom em matemática,
nem em nenhuma área das ciências da natureza ou da linguagem. Sobrou humanas e,
dentro delas, a História me pareceu mais razoável. Sendo sincero, tenho medo de
dar aula. Quando mais a colação se aproxima, mais me lembro dessas cicatrizes.
Além disso, as escolas públicas possuem problemas muito maiores que as aulas.
Uso de drogas ilícitas, tráfico, agressões físicas, expulsões, violência doméstica
e abuso sexual, fome. Esses são algumas das questões presentes nas escolas que
estudei. Além do mais, com a pandemia as escolas estão precisando lidar com a
evasão altíssima, com uma enorme defasagem dos alunos e com a saúde mental
debilitada de toda a comunidade escolar. Acrescenta-se a isso a implementação
do novo ensino médio e se tem a mistura perfeita para o caos.
Tenho medo da escola, de não ser um bom
professor. Não sei qual postura adotar, o quão rígido ou flexível preciso ser.
Congelo toda vez que um aluno conversa comigo e começo a suar frio quando vejo
tantas pessoas em um só lugar (geralmente a maioria bem maior que eu). Não
consigo olhar direito para os olhos, tenho a língua presa e não gosto de toque.
Tenho medo de qual futuro me aguarda. Todas essas emoções me fazem refletir por
que estou aqui hoje. Apesar de todo os problemas, tenho algumas hipóteses. Acho
que eu nunca quis ser como as pessoas ao meu redor. Não queria um futuro em que
eu me contentaria com um diploma de ensino médio e um trabalho exploratório a
troco de um salário mínimo (às vezes menos que isso). Também não queria me
tornar uma estatística. Não sinto mais raiva dos meus colegas de sala, mas sim
pena. Muitos se associaram ao crime organizado, outros tiveram filhos na
adolescência e alguns foram alvejados pela polícia. Eu não tinha boas
referências para seguir, mas me arrisquei em tentar algo diferente.
Provavelmente, sou um dos poucos da minha
turma do fundamental que se formou. Podem chamar isso do que quiserem, sorte,
mérito, esforço. Eu encaro como dissidência. Sim, o nerd esquisito da sala
sobreviveu e se tornou um historiador, contrariando várias estatísticas de
violência e de futuros possíveis. Apesar de ser uma jornada um tanto solitária,
encontrei ecos e brechas. Sabe, não costumamos ter muitas oportunidades, então
é bastante comum encarar as que temos como únicas. As poucas chances que nos
são concedidas (ou conquistadas), me fizeram chegar onde estou. Não deveria ser
motivo de orgulho, mas se tornou tudo o que tenho. Precisei fazer um curso de
História para entender algo básico: as coisas mudam, sejam para piores ou
melhores. Eu mudei. Ademais, também constatei algo. O ensino público possui uma
energia. Ele é conflitante e está sendo tensionado a todo momento, mas existe
uma energia lá apesar de tudo. Os estudantes parecem cada vez mais sedentos por
mudanças rápidas. Tenho curiosidade de ver como eles irão transformar o mundo.
Talvez seja por não querer ser como meu
pai. Talvez seja por querer fazer diferente do que me fizeram. Talvez seja por
raiva, pena ou os dois. Ou talvez seja por eu não ter outra opção. Fato é que
eu me formei. Mais do que isso, me formei falando sobre morte e vida,
tensionando as brechas até onde consegui. Me formei falando sobre mim, um corpo
preto bissexual no país em que a juventude negra é a que mais morre. Há uma
energia aí também. Não me arrependo de cursar licenciatura em História. Faria a
mesma escolha se tivesse que escolher novamente. O curso de humanas humanizou o
E.T. O que fazer agora, depois de depois do depois? Não sei, mas entendo que
enquanto viver, haverá infinitas possibilidades de futuro, sejam boas ou ruins.
Só sei que continuarei contando histórias.
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